domingo, 6 de dezembro de 2009

Uma outra religião



Eu piso torto. Não é muito perceptível pra quem vê de fora. Sempre foi assim. Nasci pisando pra dentro. Vivia caindo na rua, trocava os chinelos e tinha muitas cicatrizes no joelho. Dia desses fui apostar corrida com um menino mais velho que morava lá na vila. Ele na bicicleta e eu correndo. “Aposto que eu te venço mesmo você na bicicleta”. Cataploft. Não deu outra. Tenho a marca até hoje. Minha mãe me levou a vários ortopedistas pra saber se eu precisava de botas ou o que era preciso fazer. Botas? Não, coloque-a pra fazer ballet. Mãe pra onde você ta me levando? Pra uma escola de dança. Você vai fazer ballet, filha.

Eu já tinha visto algumas bailarinas. Sempre me encantei. Comecei a me imaginar dançando, principalmente quando descobri que no final do ano teria uma apresentação. Tinha seis anos de idade (a mesma idade que eu ganhei o Dumbo – vide postagem do dia 15 de agosto). Tão nova, mas tão decidida: Serei bailarina. O primeiro dia foi um desastre. Não, eu não cai, tropecei ou algo do gênero. Quando eu cheguei à escolinha da tia Marta, tinha ido no dia errado: o dia do jazz. Ah, não tem problema. Hoje você faz jazz, amanhã você vem pro ballet. Cadê a minha avó? Eu quero ir embora. E nisso as lagrimas já me corriam pelo rosto.Acontece que a minha avó me deixou por lá e foi ao salão de beleza, mas não me avisou. Sua avó deve ter ido embora, ela não está aqui – disse a secretária. O que pode passar na cabeça de uma criança de seis anos numa situação dessas. Ela esqueceu de miiiimmm... Me leva pra casa? Depois a vovó apareceu. De cabelo novo.

O segundo dia foi melhor. Agora sim, hoje é o dia do ballet. Eu realmente impressionava. A professora e as estagiarias gostavam de mim: você é flexível, menina! Ai ela é uma gracinha! Ah ela tem talento. Nem ligaram muito pro meu pezinho torto. A primeira apresentação, eu me lembro bem, vestia uma roupinha laranja. Éramos as florzinhas do espetáculo e fomos as mais aplaudidas. O motivo é óbvio: Quem é que não vai aplaudir essas coijinhas tão fofinhas cuti cuti da mamãe?

Quando eu ia completar 9 anos eu tive que sair da escolhinha, por causa do horário da escola (de ensino fundamental agora). Eu fiquei triste, mas prometi pra mim que um dia iria voltar. As crianças são seres aparentemente inocentes e que talvez não pensem em nada a não ser brincadeiras. Porém por dentro tem todo um planejamento e pensamentos tão maduros que chegam a ser melhor que adultos. Ai chega a adolescência e tudo se perde. Eu tinha meus planos e meus pensamentos. Não que ache que era melhor que adultos. Mas já tinha os planos da minha vida feitos.

Não foi bem como eu planejei. Já estava na sexta série e não tinha nem pisado em qualquer escola de dança até o presente momento. Estudava em colégio de freira. Esses colégios de freira sempre querem estimular coisas do tipo leitura, campanhas da fraternidade, feiras da cultura, festas conservadoras. Festas as quais precisavam de dança para diretora irmã Marisa. Eis que surge o concurso: Corpo de Baile. Quinze meninas seriam escolhidas para formarem o grupo de dança da escola e teriam descontos nas mensalidades. Foram 107 inscritas e eu estava entre elas. O teste não foi difícil, mas juntando com o nervosismo e varias pessoas olhando ficou um tanto mais, como posso dizer... Cômico. Pelo menos de minha parte. O teste foi sexta e resultado saiu na segunda. A lista das meninas que passaram tinha sido colocada na porta da quadra e na hora do recreio foi uma muvucada de gente querendo saber o resultado. Eu, baixinha como sempre, nem consegui ver direito tão pouco passar pela multueira de gente. No final do recreio finalmente pude chegar perto da lista e qual o resultado: Não passei.Uma semana depois a professora de dança e educação física veio até mim para contar que eu havia passado em décimo sexto e que uma menina desistiu. Você quer entrar no lugar dela, Ingrid? Sem pestanejar eu disse que sim. Ok, amanhã você vem para os ensaios porque a gente já montou metade da coreografia.


A maioria das meninas eram bonitas. Populares. Faziam dançam desde pequenas. Dançavam muito bem. Eu? Olha, eu tinha uma enorme força de vontade. Perguntei a professora se podia apenas observa-las dançando primeiro e depois tentar dançar. Ah! Não, Ingrid, não há tempo para isso. Entra ali no meio da dança e aprende. O meu primeiro dia foi basicamente tentar aprender a coreografia complexa que já estava pela metade montada e que parecia diversão pra todas elas. E é claro: fiquei atrás pra tentar copiar, mas quem disse que aprendi? Pra deixar a situação ainda “melhor” a professora ainda acrescentou mais passos.

Adolescente é um bicho muito chato, mas pré-adolescente deve ser pior ainda. Que garotas chatas. Muito chatas. Eu não gostava de ninguém. Sempre era excluída. Ainda descobri que me zoavam pelas costas. Elas só falavam de coisas imbecis a meu ver, como matinês, micaretas e garotos bonitos da escola que cagavam e andavam pro mundo. Nos próximos ensaios eu já estava armada. Resolvi que ia aprender a dançar com ou sem a ajuda delas. No dia da apresentação não deu outra. Foi sensacional. Nunca me senti tão bem dançando. Meus amiguinhos da turma vieram me dar parabéns e no recreio as pessoas me reconheceram como a garota do corpo de baile.

O tempo passou e fui aperfeiçoando. Aprendi a dançar ballet, jazz, sapateado, street. Tudo para apresentações das festas da escola. Agora já não tinha mais raiva e até me dava muito bem com as meninas. Nos tornamos uma família. Ok, talvez nem tanto, mas já dava pra se divertir.
Entrei em uma escola de dança perto de casa e consegui melhorar mais ainda. Fiz amigas de verdade que não estavam preocupadas em dançar melhor que eu, mas sim em curtir as aulas de ballet.

No ensino médio eu passei para o CEFET/RJ e tive que sair do colégio de freira. Tive notícias que o corpo de baile continuou mesmo sem a maioria das pessoas, mas nunca foi o mesmo de antes. Ninguém queria mais assistir.


Agora dançar já tinha se tornado uma religião pra mim. Não conseguia mais viver sem. Entrei pra uma das melhores academias da região. Esse sim foi um desafio. Aprender a fazer ballet com professores bailarinos do Theatro Municipal. Era aula todos os dias. Sabem como é eu nunca fui magra e nessas academias você sempre se sente obesa. Esse era o único problema. Porque os professores eram super atenciosos comigo e sempre me disseram que eu era muito boa, mas que precisava emagrecer, emagrecer e emagrecer. Assim eu poderia entrar no grupo de dança deles e viajar para apresentações em outros lugares. Não posso esquecer de citar todas as amizades. Diferente do que muitos pensam das bailarinas, essas não eram nem um pouco metidas.


Em dois anos nessa academia eu consegui dançar dois ballets de repertório e ainda aprender a fazer ballet contemporâneo.

Nunca desisti de aprender nem de tentar entrar para o grupo. Não me arrependo de nada. Mas como tudo na vida o fim chegou. Eram muitas contas a pagar e eu precisava passar no vestibular, pagar um cursinho. Então no início desse ano eu tive que ir lá cancelar a minha matrícula. É claro que eu chorei. Foi um dos dias mais tristes pra mim. Principalmente pelo fato de que os professores disseram que eu entraria no grupo a partir daquele ano.

Ainda me sinto triste quando vejo uma apresentação. Mas feliz. Feliz por saber que eu também já dancei e consegui chegar a um ponto que nunca imaginei chegar. Agradeço sempre a todos os professores de lá que acreditaram e ajudaram na conquista de todo o meu progresso. Não sei se um dia retornarei a fazer minhas aulas, mas toda a felicidade que me proporcionaram nunca será esquecida.


OBS: Eu continuo pisando torto.
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